Câncer é uma doença genética
Nas duas últimas décadas temos observado um grande avanço no conhecimento dos mecanismos biológicos que determinam a ocorrência de tumores malignos. O câncer é hoje compreendido como uma doença que se origina pelo acúmulo de alterações genéticas em um clone de células, que passam a não mais responder aos mecanismos fisiológicos de controle do crescimento celular, multiplicando-se e expandindo-se de forma autônoma. Embora na vasta maioria dos tumores malignos as alterações genéticas (mutações) sejam encontradas exclusivamente nas células que compõem o tumor, sabe-se, há décadas, que em percentagem reduzida de casos (~1-2%), para alguns tipos de câncer, ocorre um padrão de hereditariedade, o que sugere a participação de fatores genéticos herdados no desenvolvimento destes casos. Essa observação levou inúmeros grupos de pesquisa a tentar isolar e caracterizar genes que, quando alterados, estão claramente associados a determinadas neoplasias hereditárias. Na tabela 1estão listados alguns exemplos de tumores e os genes associados correspondentes. Nestes casos, pôde-se estabelecer que mutações nos genes citados apresentavam segregação familiar que coincidia com a ocorrência das neoplasias. Percebe-se, pela tabela, que um mesmo gene pode estar associado a mais de um tipo de câncer. Assim como o mesmo tipo de câncer pode estar associado a diferentes genes.
Tabela 1. Exemplos de tumores com os respectivos genes para os quais pôde-se detectar mutações.
TumorGeneRetinoblastomaRB1Câncer colo-retal (com polipose adenomatosa)APCCâncer colo-retal (sem polipose)MLH1, MLH2, PMS1, PMS2, MSH6Tumor de WilmsWT1, WT2Câncer de mamaBRCA1, BRCA2, TP53, ATM, PTENNeoplasia endócrina múltiplaMEN1, RETTumor de ovárioTP53, BRCA1, PTCLeucemiasTP53Esses estudos têm permitido ainda caracterizar a função das proteínas codificadas por estes genes. Estão envolvidas em vários processos celulares, como proliferação, diferenciação, apoptose e manutenção da integridade do material genético. São compostas por: receptores de membrana (como RET), proteínas estruturais ou reguladoras citoplasmáticas (como APC), fatores de transcrição (como TP53, WT1 e RB1), ou proteínas envolvidas nos mecanismos de reparo do DNA (como BRCA1, BRCA2, MSH2, MLH1, PMS2).
A maioria desses genes age como "supressores" do desenvolvimento de tumores. Todos os genes citados estão localizados em cromossomos autossômicos, portanto estão presentes em duas cópias. Mutações herdadas em uma das cópias de um gene supressor não são suficientes para determinar uma mudança de comportamento da célula. Porém, quando sua segunda cópia se torna alterada por uma mutação somática (não herdada) a célula pode adquirir um comportamento neoplásico. Em raras ocasiões as mutações ocorrem em um oncogene (por exemplo RET) e nesse caso não há necessidade de alteração na segunda cópia do gene para transformação neoplásica. Seja em uma situação (mutação em gene supressor) ou outra (mutação em oncogene) há necessidade de mutações somáticas adicionais para o desenvolvimento do câncer.
Desta forma, indivíduos que herdam mutação em um gene supressor (ou oncogene) apresentam maior chance de desenvolvimento de neoplasias porque necessitam de menor número de alterações somáticas para transformação celular neoplásica.
Fica, portanto, evidente que uma das grandes contribuições destes estudos foi a melhor compreensão dos mecanismos normais de controle de proliferação e diferenciação celulares e as anormalidades associadas aos mecanismos oncogênicos.
Câncer de mama e de ovário
Anualmente, nos EUA, são diagnosticados cerca de 200.000 novos casos de câncer de mama (50.000 óbitos por ano) e 25.000 novos casos de câncer de ovário. Deste total, cerca de 5 a 10% são considerados hereditários ou familiares. Embora mutações em vários genes tenham sido descritas em associação ao câncer de mama e de ovário familiares, dois genes – BRCA1 e BRCA2 são os responsáveis por cerca de 80% desses casos. Outros genes supressores envolvidos são: TP53, PTEN, ATM, MSH2, MLH1.
A identificação dos genes BRCA1 (1994) e BRCA2 (1995) provocou um grande impacto em nosso meio, não só pela prevalência do câncer de mama e de ovário mas pela freqüência elevada de alterações nesses genes. Desta forma, tornaram-se os principais genes de suscetibilidade descritos até o momento, e desencadearam inúmeros estudos visando à investigação da predisposição genética para o câncer de mama e de ovário.
Centenas de diferentes mutações, distribuídas ao longo dos genes BRCA1 e BRCA2, foram caracterizadas. Com exceção de poucas populações (judeus Ashkenazi, Islândia) onde pôde ser observado "efeito fundador" (populações originadas de um número pequeno de indivíduos), não há mutação única que seja responsável por significativa proporção de casos.
Em judeus Ashkenazi (cujos ancestrais são originários da Europa central e oriental), mutações dos genes BRCA1 e BRCA2 são muito prevalentes, estando presentes em cerca de 1 a 2,5% dos indivíduos. Três mutações são as responsáveis por esta alta prevalência: 185delAG, 5382insC (BRCA1) e 6174delT (BRCA2).
Riscos associados às mutações dos genes BRCA1 e BRCA2
O risco, na população geral, para o desenvolvimento de câncer de mama até 80 anos de idade é estimado em cerca de 10% (1 em cada 10 mulheres). Para o câncer de ovário é de quase 2%. Mulheres que herdam uma mutação em uma das cópias dos genes BRCA1 ou BRCA2 apresentam uma elevação significativa deste risco: 56% a 87% para câncer de mama e 16% a 44% para o câncer de ovário, até os 70 anos de idade. No caso do câncer de ovário, o risco está quase restrito às mutações do gene BRCA1.
Além do risco elevado, mutações nos genes BRCA1 e BRCA2 determinam ocorrência de câncer em idades precoces. Estudos recentes indicam que a mediana das idades para o diagnóstico de câncer de mama, em portadoras de mutação do gene BRCA1, situa-se abaixo dos 45 anos de idade.
Mutações nestes genes também podem predispor a outras neoplasias. Mutações no gene BRCA1 predispõem a câncer de próstata (risco 3 vezes maior para seus portadores, em comparação com o risco populacional global) e câncer colo-retal (risco 4 vezes maior em comparação com o risco populacional global). Por sua vez, mutações no gene BRCA2 predispõem ao câncer de mama em homens e parecem também estar associadas a câncer de pâncreas.
Quando e como devem ser realizados testes para os genes BRCA1 e BRCA2?
Se considerarmos que apenas cerca de 5% a 10% dos casos de câncer de mama e ovário estão associados a mutações dos genes BRCA1 e BRCA2, não há até o presente nenhuma recomendação para triagem indiscriminada de anormalidades nesses genes. Todas as sociedades médicas têm recomendado critérios definidos para indicação dos testes para identificação de anormalidades dos genes BRCA1 e BRCA2. Na tabela 2 é ilustrado um dos protocolos recomendados para indicação dos testes:
Tabela 2. Protocolo de critérios para recomendação dos testes para investigação de anormalidades dos genes BRCA1 e BRCA2:
Mulheres com:
Câncer de mama ou ovário em idade jovem (antes da menopausa)
Câncer de mama bilateral a qualquer idade
Câncer de mama e ovário a qualquer idade
Câncer de mama ou ovário a qualquer idade mais dois parentes de primeiro ou segundo grau com câncer de mama ou ovário
Câncer de mama ou ovário a qualquer idade mais 1 parente de primeiro ou segundo grau com câncer de mama ou ovário em idade jovem (antes da menopausa)Homens ou mulheres com história familiar de:
Câncer de mama ou ovário em dois ou mais parentes de primeiro ou segundo grausHomens com câncer de mamaParentes de primeiro ou segundo grau de indivíduo com mutação no gene BRCA1 ou BRCA2Uma vez indicada a investigação de anormalidades dos genes BRCA1 e BRCA2, deve-se considerar outro aspecto de grande relevância: a metodologia empregada. Com exceção da população de judeus Ashkenazi, onde apenas 3 mutações são muito prevalentes, em todas as outras populações estudadas as mutações encontradas são muito variadas, não havendo predomínio evidente de nenhuma em particular. Sendo assim, a metodologia recomendada e adotada pelos laboratórios internacionais, é o sequenciamento completo dos genes BRCA1 e BRCA2. Somente assim, pode-se garantir a identificação de todas as mutações. Triagem das mutações prevalentes em judeus Ashkenazi em indivíduos de outras populações é inaceitável, assim como também é inaceitável o emprego de métodos de triagem que possuem sensibilidade reduzida, como SSCP ou DGGE.
Como interpretar os resultados?
Para as mulheres que não apresentam câncer de mama ou ovário mas que possuem mutação identificada dos genes BRCA1 ou BRCA2 deve-se fornecer a informação correta acerca dos riscos de desenvolvimento da doença. Testes positivos não indicam certeza do surgimento do câncer, apenas indicam uma probabilidade aumentada (risco) para o seu desenvolvimento em relação à população geral. Na tabela 3 são listadas as condutas recomendadas para mulheres com mutação dos genes BRCA1 e BRCA2.
Tabela 3. Opções de conduta para mulheres com mutação dos genes BRCA1 e BRCA2.
Exames de detecção precoceQuimioprofilaxiaCirurgia profiláticaMamaAuto-exame: mensal, iniciando-se aos 18 - 21 anos de idadeExame Clínico pelo Médico: a cada 6-12 meses, iniciando-se aos 25 – 35 anos de idade
Mamografia: anual, iniciando-se aos 25 - 35 anos de idade
Anti-estrogênios (Tamoxifeno)Mastectomia simples bilateral (não elimina totalmente o risco pois podem restar células de tecido mamário)OvárioUltra-som Transvaginal: a cada 6-12 meses, iniciando-se aos 25 - 35 anos de idadeDosagem de CA-125: a cada 6-12 meses, iniciando-se aos 25 anos de idade
Contraceptivos oraisOoforectomia bilateral (não elimina totalmente o risco)Quando a investigação de anormalidades dos genes BRCA1 e BRCA2 resulta negativa (em parentes de primeiro grau de paciente portador da mutação), isto não indica ausência de risco para o surgimento de câncer de mama ou ovário. Apenas indica que o risco de desenvolvimento do câncer é igual ao da população geral (que é estimado em 10% para o câncer de mama e cerca de 2% para o de ovário, até os 70 anos de idade). Desta forma, deve-se ressaltar, também para estas, a importância das medidas de detecção precoce, como preconizadas para toda a população feminina.
Atualmente, todos os centros internacionais preconizam a realização do aconselhamento genético como parte obrigatória da investigação de anormalidades dos genes BRCA1 e BRCA2. Desta forma, é possível fornecer aos pacientes toda informação preliminar à realização do teste e o suporte adequado para implementação das medidas que se fizerem necessárias após sua conclusão.
Aspectos éticos
Testes genéticos de predisposição ao câncer provocam inevitavelmente discussão de natureza ética. Não há ainda consenso quanto aos limites de sua aplicação e tão pouco legislação própria quanto à divulgação e utilização dos resultados. Há preocupação generalizada quanto ao risco da discriminação (genética) que a aplicação dos testes possa eventualmente provocar. Em particular, teme-se que empresas seguradoras e pagadoras de serviços de saúde venham a utilizar (ou exigir) resultados de testes genéticos para formulação de seus produtos e preços. Movimentos neste sentido já estão ocorrendo na Europa e EUA. Paralelamente, as associações e sociedades profissionais e civis estão tentando formular e propor políticas que protejam os interesses da comunidade sem desrespeitar o direito individual à privacidade e acesso igualitário ao trabalho e serviços de saúde.
Fonte: http://www.fleury.com.br/
Marcadores genéticos de predisposição ao câncer de mama
Por: Grupo de Genética Molecular