Da era da ‘Neuroaids’ de antes ao ‘Neuro-HIV’ de agora

Por: Dr. Carlos Alberto Avellaneda Penatti??

Pensar, hoje, na pandemia de infecção por HIV/aids e afecções neurológicas decorrentes, nos remete a um cenário distinto do que foi o seu começo e escalada nos anos 80 e 90. Se antes, concentravam-se os esforços de saúde nas doenças oportunistas e seus efeitos secundários no tecido nervoso, hoje é imperioso considerar a lesão causada diretamente pelo vírus no sistema nervoso central e periférico. Tal temática continua complexa e repleta de nuances que atingem as esferas da saúde pública e preventiva; bem como se renova continuamente com os avanços em medicina diagnóstica e terapêutica no paciente portador ou exposto ao HIV. No entanto, não seria incorreto colocar que a discussão central, atual, sobre a infecção por HIV, como doença neurológica, envolve a exposição e o alcance desse vírus como agente infectante em células do sistema nervoso, sejam elas neurônios, glia ou células de Schwann, além de aspectos relativos à terapia antirretroviral atual (Tarv).

A avalanche de relatos e estudos experimentais e populacionais faz surgir alguns novos conceitos para oferecer nitidez à ‘face’ da doença atualmente. Um primeiro conceito baseia-se na condição de que apenas poucas cópias do vírus que coabitem no neurônio e na glia são suficientes para prejudicar o metabolismo dessas células para, até mesmo, induzir vias de morte celular. Esta condição torna praticamente obrigatória uma afecção marcada pela cronicidade e por poucos componentes inflamatórios. O padrão da afecção neurológica seria mais próximo, portanto, de desordens do desenvolvimento (ex: nas situações de transmissão vertical e do HIV na infância) ou distúrbios degenerativos (ex: declínio cognitivo e quadros demenciais do adulto).

Na parceria epidemiológico-experimental, o estudo in vivo em macacos mostra que astrócitos infectados pelo vírus da imunodeficiência em símios (SIV) e in vitro usando astrócitos humanos infectados pelo HIV induzem maior permeabilidade da barreira hematoencefálica – relacionada com a alteração nos canais tipo gap junctions –, associada à morte celular e ao prejuízo da função neural observada in vivo (Eugenin et al., 2011). O subtipo do HIV também contribui para a capacidade de lesão neurológica segundo Sacktor e colaboradores (2009) numa população de pacientes em Uganda, país africano subsaariano, cujas prevalências de vários subtipos do HIV e de demência associada ao vírus são altas. Esse estudo evidencia o elevado índice de 89% de demência associada ao HIV subtipo D, seguido pelo subtipo A. Devemos considerar a demência como o estágio avançado e mais grave da disfunção cognitiva. Com pacientes portadores, e mesmo os somente expostos ao HIV na transmissão vertical, o grau de prejuízo cognitivo passa atualmente por uma revisão categórica. Em parte, deve-se à Tarv tal redimensionamento que tende a considerar e detectar graus iniciais do dano cognitivo leve. Se desde 1991, a demência acima mencionada e o transtorno cognitivo-motor leve associados ao HIV eram entidades passíveis de diagnóstico e tratamento, reconhecidos por agências governamentais e de saúde pública, há um movimento ativo de grupos de pesquisadores em reclassificar o dano cognitivo num terceiro grupo de prejuízo cognitivo assintomático, ou PCA, com mínimo impacto à vida cotidiana do paciente (Antinori et al., 2007). O PCA seria o início de uma modalidade do declínio cognitivo objetivamente detectado por avaliações neuropsicológicas, em muito influenciado pelas condições socioeconômicas e culturais do portador do HIV, mas que principalmente refletiria sua condição de doença crônica na vigência da Tarv. Iniciativas como essas em muito exemplificam o melhor conhecimento de como o HIV está presente e modifica a organização e função nervosa, mas também tem sua infectividade e penetrância diretamente reguladas pela Tarv (Wright et al., 2008).

O segundo conceito advindo da interpretação de estudos populacionais que exploram o desenvolvimento do sistema nervoso central (SNC) em meio à infecção ou mesmo exposição ao HIV em crianças e adolescentes, cria a dicotomia de que a infecção pelo HIV impõe prejuízo à função motora e cognitiva mesmo na ausência de imunodepressão sistêmica. Crianças não infectadas, mas nascidas de mães com HIV, podem sofrer deterioração neurológica a posteriori por prováveis fatores genéticos e ambientais. No entanto, para as vítimas da infecção, a capacidade de estabilização cognitiva e até a melhora motora com Tarv, empregada de pronto em crianças infectadas a partir de 1997, encontra notoriedade frente aos infantes que foram privados da terapêutica antes dessa data (Lindsey et al., 2007).

Habilidades motoras, capacidade cognitiva e transtornos psiquiátricos são condições clínicas e sociais que o HIV determina ou influencia de algum modo. No âmbito dos transtornos psiquiátricos, fica crítico entender os mecanismos fisiopatológicos dependentes do HIV per se e das condições ambientais em que o HIV está inserido. Além dos riscos das doenças psiquiátricas encontradas na problemática do HIV, essas ainda sinalizam risco aumentado para hábitos de abuso de drogas, doenças sexualmente transmissíveis, gravidez indesejada ou de risco e disseminação do próprio HIV (Mellins et al., 2009).

Finalmente, temos o conceito do enfrentamento do HIV como agente primário da afecção neurológica atenuada pela eficácia da Tarv (Wright et al., 2008), mas com o avanço em estratégias terapêuticas outras, que atinjam o paradigma HIV - sistema nervoso de modo a propiciar novos instrumentos de proteção celular (Agrawal et al., 2006). Enquanto a eficácia desse novo fronte de combate ao HIV nas disfunções e doenças neurológicas ainda espera auxílio para sua plenitude e aplicação clínica, contamos com a adequada e contínua avaliação neurológica e neuropsicológica complementadas por métodos de biologia molecular, imunologia e patologia, integrados à farmacoterapia individualizada no resgate da condição do indivíduo com HIV.

Fonte: http://www.fleury.com.br/

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