Avaliação funcional para o tratamento cirúrgico do câncer de pulmão

Por: Dr. João Marcos Salge?


A abordagem cirúrgica envolvendo ressecção do parênquima pulmonar constitui importante estratégia no tratamento do câncer de pulmão não pequenas células. Quando adequadamente indicada, a realização de lobectomia com dissecção linfonodal do mediastino está associada a índices de sobrevida que podem atingir até 70% em cinco anos, superando em muito outras modalidades terapêuticas. Entretanto, a retirada de parênquima pulmonar representa um risco de deterioração funcional, podendo impactar na qualidade de vida do paciente ou até mesmo levá-lo à morte. A avaliação funcional respiratória é, portanto, além de útil ao estadiamento, essencial para a definição de elegibilidade ao tratamento cirúrgico radical. Essa questão reveste-se de importância ainda maior por conta do tabagismo, que representa, ao mesmo tempo, fator de risco para o câncer de pulmão e para a doença pulmonar obstrutiva crônica, sendo frequente a necessidade de retirada de parênquima pulmonar em paciente com pulmão funcionalmente comprometido.

A delimitação de níveis funcionais aceitáveis para a elegibilidade à cirurgia com ressecção do parênquima pulmonar representa, portanto, grande desafio. Para a decisão clínica relacionada à condição funcional de ressecabilidade, a informação mais relevante é o nível de função pulmonar que restará após a retirada de parte do parênquima pulmonar. Nesse sentido, os parâmetros funcionais pré-cirúrgicos são utilizados como marcadores preditivos da função pulmonar pós-operatória. Essencialmente dois aspectos são necessários para essa predição: o nível de função pulmonar basal e a extensão prevista da ressecção.

Dentre os diversos parâmetros funcionais rotineiramente avaliados, três são particularmente robustos quanto à sua associação com desfechos clínicos: o volume expiratório forçado do primeiro segundo (VEF1), a difusão (DLCO) e o consumo de oxigênio no pico do esforço (VO2pico), obtido em teste cardiopulmonar de exercício (TCPE).

Função pulmonar basal e exercício

Considera-se que a presença de VEF1 pré-operatório maior que 2 L (ou 80% do previsto) caracteriza reserva funcional suficiente para pneumonectomia, enquanto o VEF1 pré-operatório acima de 1,5 L suporta lobectomia(3)(2). Recomenda-se também, além da medida do VEF1, a avaliação da DLCO nos casos de queixa de dispneia desproporcional às características clínicas ou funcionais, intolerância ao esforço ou presença de pneumopatia intersticial. Caso o VEF1 e a DLCO sejam ambos superiores a 80% dos valores previstos, o risco funcional é considerado baixo e nenhum teste adicional se faz necessário.

Além dos indicadores de função no repouso, também o teste cardiopulmonar de exercício fornece informações importantes para avaliação de ressecabilidade. Considera-se um VO2pico superior a 75% do valor previsto, ou 20 mL/kg/min, suficiente para a realização de pneumonectomia, ao passo que níveis abaixo de 35% do previsto, ou 10 mL/kg/min, associam-se a alto risco para ressecção de qualquer extensão. Não há evidências na literatura que apontem nível mínimo para lobectomia.

Partição regional da função pulmonar

A abordagem descrita, entretanto, não particulariza aspectos importantes como o tipo, o local e a extensão de parênquima pulmonar a ser ressecado e a possibilidade de heterogeneidade funcional regional. Podem existir situações específicas em que a estimativa do impacto funcional da ressecção seja hiperestimada. Para endereçar esse ponto, pode-se realizar a partição regional da função pulmonar, que consiste num cálculo para determinar a função pulmonar estimada no pós-operatório. O conceito baseia-se em atribuir à região-alvo da ressecção uma parcela de contribuição funcional em relação ao todo e subtraí-la da função total medida no pré-operatório.

A maneira mais simples de realizar tal cálculo utiliza a ideia de proporcionalidade do número de segmentos pulmonares funcionantes a serem retirados no ato cirúrgico. Considerando-se que os dois pulmões somam, ao todo, 19 segmentos, basta subtrair da função pulmonar pré-operatória a contribuição estimada pela porção a ser ressecada, chegando-se à função esperada pós-operatória. Como exemplo, numa lobectomia superior direita que vá retirar três segmentos do total de 19, estima-se que a função pós-operatória residual será de 84% (ou 16/19) daquela medida no pré-operatório. Essa proporcionalidade pode ser aplicada para estimar VEF1, DLCO ou VO2pico.

Essa forma de cálculo pressupõe contribuição funcional equivalente entre todos os segmentos pulmonares. Contudo, é possível fazer uma partição funcional refinada, levando em conta características regionais do parênquima pulmonar. Isso pode ser feito atribuindo-se à região-alvo da ressecção uma fração de contribuição funcional baseada em estudos de imagem dos pulmões. Pacientes com função pulmonar limítrofe devem, necessariamente, ter estimada sua função pulmonar pós-operatória com o uso de métodos de imagem como a cintilografia pulmonar quantitativa de perfusão e a tomografia computadorizada quantitativa, respectivamente antes da realização da pneumonectomia e da lobectomia(4).

A utilização de análise quantitativa da tomografia computadorizada para estimativa da função pulmonar regional mostrou acurácia pelo menos equivalente à da cintilografia de perfusão, porém esse método não costuma estar rotineiramente disponível, razão pela qual seu uso ainda se destina apenas a finalidades científicas. Métodos mais sofisticados de exames de imagem, como estudo perfusional por ressonância magnética ou Spect/CT, já foram descritos com acurácia superior em relação à cintilografia de perfusão para estimar os indicadores funcionais pós-operatórios, porém ainda não foi mostrada justificativa para sua utilização rotineira.

Análise integrada dos indicadores funcionais

O conjunto de evidências mais recentes que norteiam as decisões clínicas quanto aos limites funcionais para ressecabilidade foram sintetizados em algoritmo proposto pela British Thoracic Society/British Society of Thoracic Surgery, reproduzido abaixo. As condutas propostas pelo algoritmo baseiam-se no risco de complicações, estimado a partir da combinação dos parâmetros funcionais correlacionados com desfechos clínicos (VEF1, DLCO ou VO2pico), sejam seus resultados medidos no pré-operatório ou sua estimativa no pós-operatório feita por meio da partição da função pulmonar baseada na extensão da ressecção programada. Convém ressaltar que, apesar de prover visão objetiva para a tomada de decisão, o algoritmo não pretende restringir a conduta às situações nele previstas, posto haver grande número de variáveis não contempladas e que podem influenciar sobremaneira a decisão médica. Assim, deve-se utilizá-lo como ferramenta de apoio à decisão, cabendo análise individualizada dos casos para a decisão final.



Reproduzido de Brunelli A e cols. Eur Respir J. 2009 Jul 1;34(1):17-41.

Fonte: http://www.fleury.com.br/

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