Durante muitos anos, o diagnóstico das doenças em geral era feito exclusivamente pelos dados clínicos, obtidos pela história e exame físico. O laboratório, assim como os outros exames subsidiários (raios-x, ultra-som, tomografia, ressonância magnética e biópsias) eram pouco desenvolvidos. As maiores dificuldades eram vividas pelas especialidades em que as doenças se apresentam de maneira indefinida e com quadros superponíveis, impedindo um diagnóstico preciso. A Reumatologia se beneficiou muito com a evolução das técnicas laboratoriais, especialmente no estudo das doenças auto-imunes. A identificação da célula LE no fim da década de 40, e, poucos anos após, o desenvolvimento da técnica de imunofluorescência, permitiram a identificação dos autoanticorpos (FAN) no lúpus eritematoso sistêmico. A caracterização dos antígenos nucleares e sua purificação têm contribuído para um melhor conhecimento da fisiopatologia das doenças auto-imunes e representam um considerável auxílio para o diagnóstico dessas doenças. Em contrapartida, com a introdução das células HEp-2 como substrato da reação de imunofluorescência indireta para pesquisa de anticorpos antinúcleo, observou-se um grande aumento na sensibilidade do teste, o que acarretou menor especificidade: começaram a ser verificados resultados "falso positivos", ou seja, FAN positivo em pessoas normais ou em doentes com queixas que não se enquadravam em patologias reumáticas auto-imunes. Surge, então, uma situação delicada: pedir um exame que, do ponto de vista clínico, tem um valor preditivo positivo muito baixo. Muitas vezes, a situação clínica se resolve espontaneamente ou com medicação sintomática, independentemente do resultado do FAN ser positivo com altos ou baixos títulos. O paciente pode aceitar a informação de que 5 a 13% da população normal pode ter o exame positivo, sem significar doença, ou pode ficar permanentemente preocupado com a possibilidade de desenvolver uma doença auto-imune. Desse modo, a solicitação do exame deve obedecer a um critério clínico, dentro das hipóteses diagnósticas. A negatividade do FAN diante de um quadro clínico suspeito de lúpus eritematoso sistêmico é incomum, pois o índice de positividade atinge 98%. Assim, é importante contatar o laboratório para uma nova análise do soro, ou procurar outra explicação para o resultado obtido.
Outra informação importante no resultado do FAN refere-se aos padrões de fluorescência e títulos. Na literatura existem diferentes publicações que descrevem uma possível associação entre o padrão de fluorescência e determinadas doenças reumáticas auto-imunes. Alguns padrões como o homogêneo, pontilhado grosso e nucleolar apresentam esta característica; e no caso do homogêneo, altos títulos podem estar associados à doença em atividade. Todavia, existem alguns padrões que não guardam associação específica com doenças reumáticas auto-imunes, podendo mesmo ser detectados em indivíduos sadios. Entre esses, se destacam o padrão pontilhado fino com título baixo (1/80 a 1/160) e pontilhado fino denso (em qualquer título), pois representam mais de 50% dos testes positivos na rotina de um laboratório clínico geral. Em nossa experiência, na maior parte dos casos, esses dois padrões nos títulos assinalados não guardam relação com doença reumática auto-imune.
O teste do FAN pode ser complementado pela pesquisa de autoanticorpos específicos, muitos dos quais apresentam grande utilidade clínica. Assim, o anti-DNA nativo tem importância não só devido a sua especificidade no lúpus eritematoso sistêmico, mas também devido ao fato de altos títulos representarem atividade de doença, principalmente renal. Ainda nessa doença, a presença do anticorpo anti-Sm indica especificidade, apesar de ser positivo em apenas 30% dos casos. Anti-Ro/SS-A também é encontrado no lúpus e pode ser positivo nos casos em que o FAN é negativo. Ele também é encontrado na Síndrome de Sjögren, geralmente associado ao anti-La/SS-B. É encontrado em cerca de 80% dos casos de lúpus eritematoso subagudo. A maior importância do anti-Ro está relacionada a sua associação com bloqueio congênito e lúpus neonatal em crianças nascidas de mães com esse auto-anticorpo, mesmo que esta não tenha nenhuma doença evidente. Como corolário, a monitorização rigorosa da gravidez deve ser feita a partir do achado desse anticorpo. O anticorpo anti-RNP aparece em várias doenças auto-munes, mas quando o título é muito alto (1/10000) pode ser indicativo de doença mista do tecido conectivo, mesmo sem haver quadro clínico completo. Os anticorpos antiproteína P ribossomal (anti-rRNP) são marcadores específicos de lúpus eritematoso sistêmico, ocorrendo em 10-20% dos casos e possivelmente apresentando associação com manifestações neuro-psiquiátricas da doença. Outro avanço importante foi a detecção de anticorpos contra enzimas citoplasmáticas. O anti-Jo1 (anti-tRNA-histidil sintetase) aparece em 30% das polimiosites e em 70% quando ocorre o acometimento pulmonar. Também o anti-Scl-70 (anti-topoisomerase I) aparece em 40% de pacientes com esclerose sistêmica, forma difusa, enquantoo anticentrômero aparece em 80% das formas limitadas dessa doença (CREST). Outro progresso foi obtido a partir da identificação de anticorpos anticitoplasma de neutrófilos pela imunofluorescência. Dois padrões são identificados: c-ANCA e p-ANCA. O primeiro possibilita a confirmação diagnóstica da granulomatose de Wegener (forma pulmonar e renal), sendo menos freqüentemente encontrado nas formas mais localizadas, enquanto o outro é encontrado em uma série de doenças, principalmente nas vasculites sistêmicas idiopáticas ou nas desencadeadas por drogas (propiltioiuracil). Outros autoanticorpos também contribuíram para o diagnóstico e melhor compreensão da doença, como o anti-histona (lúpus induzido por drogas), o antinúcleo de célula em proliferação (PCNA), um raro marcador de lúpus eritematoso sistêmico, o anti-PM-1 (PM/Scl) encontrado em cerca de 25% dos casos de superposição entre miopatia inflamatória idiopática e esclerose sistêmica, o anti-Mi-2, especificamente associado à dermatomiosite, e o anti-Ku, encontrado no lúpus eritematoso e em casos de síndromes de superposição.
Um evento notável foi a descoberta dos anticorpos antifosfolípides, que possibilitou a identificação de uma nova entidade clínica, denominada síndrome do anticorpo antifosfolípide. Embora a fisiopatologia ainda apresente pontos controversos, esses autoanticorpos parecem interagir com fosfolípides associados a um cofator no endotélio vascular, provocando tromboses arteriais e venosas, e abortos de repetição.
Nos últimos anos tem se dado grande destaque aos anticorpos do sistema da filagrina-citrulina como marcadores específicos de artrite reumatóide. Este sistema diz respeito a autoanticorpos que reconhecem epítopos que contenham um resíduo citrulina, um aminoácido derivado da diminação da arginina. Os testes disponíveis para detecção desses autoanticorpos são o ELISA para anticorpos anti-CCP (cyclic citrulinated peptide), o ensaio do fator antiperinuclear (APF) e o de anticorpos anti-estrato córneo de esôfago de rato. Esses dois últimos são realizados por imunofluorescência indireta e detectam anticorpos contra a filagrina e seu precursor, profilagrina, nos substratos respectivos. Essas proteínas são ricas em resíduos citrulina e, portanto, oferecem múltiplos epítopos citrulinados para reconhecimento pelo soro reumatóide. Os três ensaios oferecem painéis de epítopos parcialmente superponível, de forma que não é infreqüente que algum soro reaja em apenas um ou dois dos três sistemas. Apresentam grande especificidade e ocorrem precocemente no curso da artrite reumatóide.
Os anticorpos antinucleossomo são marcadores específicos do lúpus eritematoso sistêmico, apresentando maior sensibilidade e aparecendo mais precocemente que os anticorpos anti-DNA. Ademais, guardam correlação com a atividade de doença, especialmente com a nefrite. São determinados por ELISA. O nucleossomo representa a menor unidade da cromatina, sendo constituído por um trecho de DNA nativo envolvendo um octâmero de moléculas de histonas. Os anticorpos antinucleossomo representam os autoanticorpos detectáveis pelo teste das células LE, com vantagens de maior sensibilidade e melhor padronização técnica.
Esta visão sucinta dos anticorpos identificados nos últimos anos, e as informações que podem ser extraídas a partir da sua presença, facilitam o clínico a encontrar o diagnóstico dos casos de apresentação complexa e indefinida. Muitos desses casos apresentam evolução rápida e com gravidade, de maneira que o tratamento precoce proporciona a recuperação e maior sobrevida desses pacientes.
Fonte: http://www.fleury.com.br/
Aspectos práticos do laboratório em relação ao fator antinúcleo e outros autoanticorpos de interesse para reumatologista
Por: Dr. Luis Eduardo Andrade Carvalho, Dr. Isidio Calich e Dr. Paulo Leser?